Alzira Pacheco Lomba Kotona, cidadã do Vale do Ribeira 2l3r4j

Advogada, poetisa e defensora dos menos favorecidos, Alzira Pacheco Lomba Kotona marcou época no Vale do Ribeira. Nascida em 1º de agosto de 1935 no município de Glicério (SP), foi a oitava filha do casal José Pacheco Lomba e Manoela Reche Pacheco Lomba.

Alzira Pacheco, em 2004.
 Alzira Pacheco, em 2004.

Em sua autobiografia, Alzira relembrou alguns fatos marcantes de sua vida, como a infância, tendo nascido, segundo lhe contaram, “em uma casa de pau a pique, no meio do futuro cafezal da Fazenda Águas Claras, à margem da Estrada de Ferro Noroeste.”

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A menina Alzira aprendeu a ler antes do quatro anos de idade. Enquanto o pai lia o jornal “Diário de São Paulo”, a filha ficava “infernizando-o”. A leitura precoce desse jornal foi para ela o “envenenamento por chumbo que me dirigiu sempre para o jornalismo”, conforme ela escreveu mais tarde.


A sua família mudou-se para São Paulo em 1940. Ao sabor de “melhores e piores tempos econômicos”, Alzira, a partir dos cinco anos, estudou no Liceu Pasteur (onde aprendeu os rudimentos do Francês, que veio somar-se ao Português natal e ao Espanhol ancestral); na Escola Nossa Senhora do Rosário (das irmãs dominicanas); no Grupo Escolar Prof. Pedro Voss; no Colégio Benjamim Constant (da colônia alemã); no Ginásio Estadual Antônio Firmino de Proença, na Mooca; no Ginásio Estadual Brasílio Machado, na Vila Mariana (um dos primeiros cursos noturnos na escola pública); no Instituto de Educação Caetano de Campos (então ainda na Praça da República); no Colégio Estadual Presidente Roosevelt (na seção autônoma da rua Gabriel dos Santos), onde terminou o curso clássico, equivalente ao atual ensino médio.


Alzira começou a trabalhar aos treze anos, dando aulas particulares de Português e Francês, geralmente para alunos de classes mais adiantadas do que a sua. Depois, fez um pouco de tudo: lavou vidros em laboratório; fez a revisão do jornal do Partido Comunista do Brasil (PCdoB); trabalhou nas rádios Gazeta e Nove de Julho; foi secretária de empresa de construção civil e de escritório de advocacia; orientadora social do SESC, que deu a ela a oportunidade de conhecer o mar, trabalhando na Colônia de Férias em Bertioga (SP); fez estágio no “Diário de São Paulo”; foi secretária de redação da Editora Banas, onde obteve o seu registro de jornalista profissional; e redatora-chefe do “Diário do Comércio”.



Alzira em 1962, aos 27 anos; em 1968, aos 33 anos; e em 2004, aos 68 anos.
Alzira em 1962, aos 27 anos; em 1968, aos 33 anos; e em 2004, aos 68 anos.

A ESTUDANTE


Em 9 de outubro de 1952, Alzira, juntamente com os alunos do Colégio Estadual Presidente Roosevelt, da rua Gabriel dos Santos, visitaram a redação do jornal “A Gazeta” para divulgarem a campanha que estavam realizando afim de angariar livros para a nova biblioteca daquela escola. A campanha foi levada a efeito de 8 a 15 de outubro, com o nome de “Semana do Livro”, e contou com o apoio de editoras, doações de particulares e bibliotecas em geral. O professor Renê Oliveira Barbosa, diretor do colégio, iniciou a campanha com uma conferência na Rádio Gazeta. A estudante Alzira entregou à redação um distintivo da campanha.


Em 13 de outubro de 1953, Alzira participou, como poetisa, do programa “Enciclopédia do Ar”, transmitido às segundas, quartas e sextas-feiras, às 18h, pela Rádio Gazeta, sob a patrocínio da Antarctica. Participaram os poetas Paulo Bonfim, Saulo Ramos, Eurícledes Formiga e Pablo Cantó, da Argentina, que declamaram versos no “Momento da Poesia”. Participaram, também, do programa Américo Bologna, Correa Júnior, a declamadora Neide Rodrigues, Luiz Carlos Ramos e Fernando Soares, supervisor do programa dedicado aos estudantes de São Paulo.


Continuando os seus estudos, Alzira prestou vestibular na tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, “as sonhadas Arcadas do Largo de São Francisco, de onde se dizia que saíam políticos, escritores, artistas e até advogados”, conforme registrou. De 1955 a 1959, estudou com muita dedicação, diplomando-se em 18 de maio de 1960.


Alzira se lembrava com saudade dos tempos da faculdade, em especial os dias e noites ados na Biblioteca Municipal de São Paulo (que mais tarde seria chamada de “Mário de Andrade”), à sombra da estátua de Minerva. Ali se reuniam os jovens intelectuais da época: Bento de Almeida Prado, Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, Maurício Tragtemberg, Carlos Henrique Escobar, Fernando Odriozola, Raulita Odriozola, Mário Bonomi e outros.


Ainda quando estudava na Faculdade de Direito, e depois de formada, Alzira trabalhou em várias atividades. De 1958 a 1959, foi orientadora social no SESC; de 1960 a 1963, trabalhou na Editora Banas, na área de jornalismo econômico; de 1964 a 1965, na Associação Comercial de São Paulo.



OS “DESAGREGACIONISTAS”


No final dos anos 1950 e início dos 1960, surgiu em São Paulo um movimento cultural promovido por jovens que não se adequavam, tampouco aceitavam os valores então vigentes. Eram os chamados “desagregacionistas”. Nesse movimento também estavam o futuro crítico literário Roberto Schwarz e o ator e diretor de teatro Jairo Arco.


Os “desagregacionistas” recusavam a “desonestidade dos meios de criação artística, da pseudocrítica, dos soi-disant [pretensos] poetas, das camarilhas literárias, dos donos de supermercados, da politicagem das letras.” Repeliam, ainda, “a tutela de uma cultura estrangeira e os pronunciamentos paternais dos papas em relação aos jovens”, e acusavam “a pobreza de nossa história literária, a senilidade dos medalhões, a facilidade das soluções propostas, a mediocridade estéril dos apadrinhados e padrinhos.”


Para esses jovens inquietos, como definiu o poeta Joel McLean Câmara, “o capitalismo, com seu espírito egocêntrico, e o marxismo, com seu sentido materialista, não correspondem aos anseios humanos de ordem absoluta e perfeição. Capitalismo e marxismo são apenas duas teses políticas. Duas teses, nada mais. Não estão com a verdade como proclamam e cometem crime de lesa-humanidade quando seduzem o homem para morrer sob suas bandeiras.”


Bradavam: “Unilateralismos não nos convém, principalmente unilateralismos políticos. E nosso século anda saturado deles: nazismo, fascismo, integralismo, comunismo... E dizemos: chega! Desta dimensão espiritual política, nós nos desagregamos.”


A revista “Manchete” (nº 414, de 26/3/1960), publicada no Rio de Janeiro, em matéria intitulada “O lema saiu de um verso: ´Nós somos o erro derradeiro de um deus em decadência´’, fazendo o mapeamento dos jovens poetas “desagregacionistas”, além daqueles que já tinham publicado livros de poesia (como Milton Marques, Helena Calil, entre jovens que estudaram na França, alguns na Sorbonne, arquitetos, desenhistas, pintores), também incluiu, equivocadamente, na relação, o nome da jovem poetisa Alzira Pacheco Lomba, então com 24 anos, recém-formada em Direito.


Na edição nº 416, de 9/4/1960, a revista publicou, na seção “O leitor em Manchete”, carta “extensa e bem escrita” de Alzira Pacheco protestando contra a inclusão indevida de seu nome na lista dos “desagregacionistas”:


“Se cometi algumas poemas, jamais, no entanto, pertenci a qualquer grupo de ´literatos´, fossem eles desagregacionistas ou não. Não poderia esperar ver meu nome envolvido com criminosos confessos, como o tal autor de ´Desagregação´, que se declara contrabandista, traficante de entorpecentes etc. [...] Conheço-os, é certo. Muitos, além de mim, os conhecem. Até mesmo o Sr. Sérgio Milliet [escritor e crítico literário], que fez a seleção e a crítica de seus versos para uma recente exposição de poesia... E quem ousaria incluir Sérgio Milliet entre tais desagregados? [...] Não me considero o erro de um Deus em decadência. Nosso Deus, o Deus dos que crêem e lutam, não decai nem erra.”



A PROFESSORA


Em 19 de janeiro de 1965, Alzira Pacheco mudou-se para Registro (SP), com a intenção de ficar por apenas três meses, mas acabou permanecendo pelo resto da vida. Em Registro, já se encontravam os pais e a irmã Rosália Pacheco Lomba Teixeira Nogueira, advogada e professora, vulto dos mais notáveis na cidade, que ali chegara em 1955.


Alzira fez exame de proficiência em Francês em 1968 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFLCH), e em Espanhol pela Universidade de Salamanca, Espanha.


De 1969 a 1970, fez pós-graduação em Orientação Educativa na Universidade de Mogi das Cruzes.


Lecionou Francês na Escola Estadual “Plácido de Paula e Silva”, em Sete Barras (SP), e na Escola Estadual “Fábio Barreto”, em Registro (SP). Lecionou, também, no Ginásio Estadual de Sete Barras (depois chamado de Escola Estadual “Maria Santana de Almeida”); na Escola Estadual “Francisco Manoel”, em Registro; no CENE de Jacupiranga (depois “Capitão Bernardo Ferreira Machado”); e na Scelisul (atual Unisep), em Registro.


Como educadora de primeiro de segundo graus, Alzira trabalhou, no Estado de São Paulo, de 1965 a 1973, como professora de Francês e Português.         


Em 1975, lecionou na Sociedade de Cultura e Educação do Litoral Sul (Scelisul), em Registro, no Curso de Pedagogia, na disciplina Medidas Educacionais.


Lecionou espanhol na Click Idiomas, de Pariquera-Açu, nos anos de 1999 a 2001.



A POETISA


Alzira Pacheco começou a escrever poemas aos seis anos de idade. A poesia sempre foi a sua companheira, “em todos os momentos e em todos os lugares”. Era a sua amiga “de todas as horas”, a “parceira inarredável”, “quase sempre amarga”, “como a vida que contemplamos, neste período escuro em que nos foi dado viver”, conforme registrou em suas memórias.


Em 1951, quando contava apenas 15 anos de idade, Alzira, já convicta de sua vocação literária, enviou para a conceituada revista “A Cigarra”, editada no Rio de Janeiro, então a Capital Federal, os contos “O luar sobre as pedras” e “Recordação”. Talvez por causa da pouca idade da autora, ou, quem sabe, devido ao mau humor do redator da revista, ele fez uma apreciação pouco lisongeira dos contos: “Parecem mais bilhetes do que contos. Desclassificados”. Naturalmente, essa crítica não fez Alzira desistir de seu dom inato para a escrita.


A revista “Mundo Melhor” (nº 10, outubro de 1958), dirigida por Mário Carvalho de Jesus e Nelson Coutinho e orientada por Francisco Marins, publicou colaboração de Alzira Pacheco, junto com outros conhecidos jornalistas e escritores como Carlos de Queirós Teles, Luiz Roberto Salina Fortes, Carmen Anna Dias Prudente, Fernando Lemos, Tristão de Lima e outros.


Como primeira experiência no setor de livros, o Supermercado de Arte, do Rio de Janeiro, promoveu, no dia 13 de fevereiro de 1969, uma tarde de autógrafos reunindo oito escritores e poetas radicados em São Paulo. Alzira Pacheco autografou o seu segundo livro, “Sonegação de Ternura”, lançado em 1968.


Em 1970, organizada pelo poeta siciliano Salvator d´Anna, foi publicada na Itália a antologia “Poesia del Brasili d´Oggi”, trazendo 23 autores brasileiros. Alzira Pacheco foi incluída nessa antologia, ao lado de renomados poetas nacionais como Murilo Mendes, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Ledo Ivo, Múcio Leão, Jorge Medauar, Cassiano Ricardo, Eunice Arruda, Walmir Ayala, Odilo Costa Filho e outros.


Alzira Pacheco fez parte da Academia Eldoradense de Letras, fundada em 11 de fevereiro de 1978 pelo poeta João Albano Mendes da Silva (J. Mendes), sendo uma das primeiras acadêmicas, ao lado do oftalmologista e escritor Avelino Gomes da Silva (Avelsemog). Ambos os autores lançaram livros naquele ano: “O Vale da Esperança”, de Alzira, e “Contos”, de Avelino.



A ADVOGADA


Alzira Pacheco exerceu a advocacia na região do Vale do Ribeira no período de 1973 a 2006, atuando, em especial, na área criminal e de júri, principalmente pela Assistência Judiciária. Como advogada atuante, dedicou-se inteiramente à defesa das pessoas carentes da região.


Sobre o seu trabalho no Fórum de Registro, contam que, em certa ocasião, o juiz a interrompia, a todo momento, ora dizendo que o argumento da advogada não era pertinente à causa, ora que ela extrapolava os limites da defesa. Ponderada, a doutora Alzira lembrava ao juiz que aquele momento pertencia exclusivamente à defesa. Irritado, o juiz disse que iria prendê-la por desacato, ao que a advogada, serenamente, respondeu: “Eu é que vou prender Vossa Excelência em flagrante, por abuso de autoridade!”. Diante da seriedade do promotor e dos policiais ali presentes, o juiz comprovou que Alzira era um patrimônio da cidade e baixou o tom.


Em reconhecimento por seu destaque na área do Direito, a subsecção de Registro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) leva o nome de “Doutora Alzira Pacheco Lomba Kotona”.



A JORNALISTA


Alzira Pacheco trabalhou na revista econômica “Banas”, de São Paulo. Fez estágio no “Diário de São Paulo”. Foi redatora-chefe do jornal “Diário do Comércio”. Teve agem também pelas rádios Gazeta e Nove de Julho.


No jornalismo do Vale do Ribeira e Baixada Santista, emprestou o seu talento para a “A Tribuna”, de Santos, “A Tribuna do Ribeira”, “Correio do Vale”, “Boletim da Aciar”. Foi redatora do “Caderno C”, editado em Jacupiranga (SP) pelo jornalista Carlos Ialongo.



A FAMÍLIA


Quando ainda era solteira, Alzira adotou uma menina de um ano de idade, Elisabeth, adotando, também, posteriormente, quando já viúva, o irmão, Orestes, quando ficou órfão, dando-lhes uma educação exemplar. Anos mais tarde, adotou outro menino recém-nascido, André Victor.


Em 23 de novembro de 1970, Alzira casou-se com Carlos Ferreira Kotona, sitiante em Registro. Nascido em Juquiá (SP) a 1º de novembro de 1940, filho do casal Miguel Kotona Jr. e Aurea Ferreira Kotona, Carlos era viúvo de Ana Gonzaga Kotona, mãe biológica de Elisabeth, Orestes e Carmen Helena (que foi adotada por Rosália Pacheco Lomba Teixeira Nogueira).


Carlos Kotonsa faleceu em 23 de janeiro de 1976, sendo sepultado no Cemitério da Lapa, em São Paulo. Conforme Alzira recordou, foram “sessenta e três meses de felicidade perfeita”.


O nome do pai de Alzira, José Pacheco Lomba, foi dado à escola de primeiro grau no bairro Arapongal, em Registro, e o de sua mãe, Manoela Reche Pacheco Lomba, à rua onde Alzira residiu por muitos anos.


A sua irmã, doutora Rosália Pacheco Lomba Teixeira Nogueira, recebeu o título de “Cidadã Registrense” em 30 de novembro de 1987.



CIDADÃ DO VALE DO RIBEIRA


Na década de 1970, Alzira Pacheco trabalhou na Promoção Social do município de Registro, em consórcio municipal, dedicando-se em seu trabalho de tornar conhecido o artesanato regional, realizando o cadastramento de artesãos das mais variadas modalidades e também promovendo feiras de artesanato.


Em 1988, candidatou-se ao cargo de vice-prefeita na chapa encabeçada pelo poeta Lauriano dos Santos.


Em 1997, a Câmara Municipal de Registro agraciou Alzira Pacheco Lomba Kotona com o título de “Cidadã Registrense”, em reconhecimento ao seu trabalho na cidade e à sua importância para a comunidade registrense.


Em 2000, candidatou-se, pelo PSB, ao cargo de vereador à Câmara de Registro, ficando como suplente.


Era jurada permanente nas festas de violeiros de 1º de maio, dedicado ao Dia do Trabalhador. Por várias ocasiões foi convidada para ser paraninfa nas escolas em que lecionou.


Destacando o seu imenso amor à cidade de Registro e ao Vale do Ribeira, a poetisa escreveu em suas memórias:


“Aqui recebi meus presentes de Deus: os três filhos que Ele me deu e a Justiça dos homens confirmou, pela adoção. Aqui pretendo ar o resto das horas que me restam, para partir como cheguei: ao rumor das águas claras. Sem levar bagagem, que não a trouxe quando cheguei, naquele frio agosto de 1935. Mas talvez deixando entre alunos, colegas ou clientes um rastro de amor. Porque a única coisa que aprendi nesta longa agem foi o amor.”


Alzira Pacheco Lomba Kotona faleceu em 21 de julho de 2006, aos 70 anos, sendo o seu corpo enterrado no Cemitério da Lapa, em São Paulo, ao lado do esposo, no jazigo da família Pacheco Lomba. A região perdia a “Doutora Alzira”, cidadão do Vale do Ribeira.


O seu nome foi dado ao Conjunto Habitacional “Doutora Alzira Pacheco Lomba Kotona “ (Registro D-2).



LIVROS


Capas dos livros: “3” (1962); “Sonegação de Ternura” (1968); e “O Vale da Esperança” (1977).
Capas dos livros: “3” (1962); “Sonegação de Ternura” (1968); e “O Vale da Esperança” (1977).


Alzira Pacheco publicou três livros de poesia, além das dezenas de poemas e artigos publicados na imprensa periódica do Vale do Ribeira, Santos, São Paulo e Rio de Janeiro: “3” (1962), “Sonegação de Ternura” (1968) e “O Vale da Esperança” (1978).


“3” (1962) – Edição da autora. Sem identicação de editora ou gráfica. Na folha de rosto consta apenas a referência: “São Paulo, 1962”. Ilustrações de Levino Brandão. 82 páginas. Dedicatória: “Aos amigos sem destino/ que podem ressuscitar/ fantasmas de velhos tempos”. Interessante destacar que todas as letras iniciais foram escritas em minúsculas, desde os nomes da autora e do ilustrador, como dos poemas e todas as outras informações. O livro é dividido em seis partes: “as manhãs” (“nada mais que três, e eram crianças”); “as tardes” (“e então partiram. de mãos dadas”); “as noites” (“uniram-se depois. e regressaram”); “as madrugadas” (“três será o número da morte”); “o livro de renato” (“livro para ninguém”); e “pastoras de vendavais”.


“Sonegação de Ternura” (1968) – Livraria 4 Artes Editora. Montagem e planejamento: Francisco Dias Santos. Foto: Hofman. 66 páginas. O livro é composto por 15 sonetos e outros 11 poemas, todos em letras iniciais minúsculas. Quando ainda inédito, “Sonegação de Ternura” recebeu Menção Honrosa no Prêmio Governador do Estado, em 1965.


“O Vale da Esperança” (1977) – Edição da autora. Composto e impresso pela Editora do Brasil S/A em dezembro de 1977. 50 páginas. Dedicatória: “A José Pacheco Lomba, meu pai, a minha irmã Rosália, e a todos que, como eles, se deixaram fascinar pelo encanto do Vale da Esperança”. O livro é composto por 20 poemas, alguns deles homenageando Miracatu, Juquiá, Registro, Sete Barras, Jacupiranga, Pariquera-Açu, Subauma, Iguape, Cananeia, Eldorado e Caverna do Diabo. As quatro ilustrações são da própria autora, como também a capa.


“Poesia del Brasile d´Oggi” - Antologia Italo-Latinoamericana 2 (1970) – Editada em Palermo, Itália. Antologia de 23 poetas brasileiros, vertidos ao italiano por Salvatore d´Anna. Alzira Pacheco foi incluída nessa antologia, ao lado de renomados poetas nacionais como Murilo Mendes, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Ledo Ivo, Múcio Leão, Jorge Medauar, Cassiano Ricardo, Eunice Arruda, Walmir Ayala, Odilo Costa Filho. De Alzira Pacheco, foram publicados os poemas “Il Casseto” (Gaveta), “Quando Sarò Grande” (Quando eu crescer) e “Manifesto” (Manifesto), todos extraídos do livro “Sonegação de Ternura”.



SARAU CULTURAL


Em homenagem à Alzira Pacheco Lomba Kotona, a Prefeitura de Registro, por meio da Secretaria Municipal de Cultura, realizou, no dia 8 de agosto de 2014, o 12º Sarau Cultural. A edição contou com várias apresentações de amigos e familiares, que mostraram um pouco da vasta produção literária da poetisa. O evento foi aberto a interessados em todos os tipos de arte: poesia, música, teatro, dança, artes plásticas, canto, instrumental, performances etc. As apresentações tiveram lugar no Teatro Wilma Bertelli (K.K.K.K).



ANÁLISES CRÍTICAS


“3”


Lançamento do livro “3”, em 1962, ao lado da cunhada, do irmão e da mãe.
Lançamento do livro “3”, em 1962, ao lado da cunhada, do irmão e da mãe.

O livro de estreia de Alzira Pacheco Lomba recebeu crítica elogiosa da coluna “Mundo dos Livros”, de J. H. Pires, publicada no “Diário da Noite” (nº 11.599, de 13/11/1962:


“Alzira Pacheco Lomba faz uma estreia poética em três tempos. Estreia cabalística, em que o número três marca a forma e a cadência do livro e dos poemas. Curioso notar a relação oculta entre a forma tríptica do livro e a cadência dos versos. E isso a começar da dedicatória, que constitui um pequeno poema em três versos, todos eles marcados pela cadência tríptica.



“O livro que aparece espontâneo, como nascido de um impulso natural, não traz nenhuma indicação: nem de editora, nem sobre a autora, nem sobre o conteúdo. O título é apenas um número: 3. Ainda bem que a capa e as ilustrações não ficaram anônimas: são de Levino Brandão. Vê-se logo que a poetisa não quis pedir licença a ninguém para entrar no mundo das Musas. E fez muito bem, porque esse mundo é dela.


“Correspondendo ao título, o livro se compõe de três partes: a primeira, que lhe dá o título, e é uma história de três destinos humanos, ando pelo ciclo da existência, em sentido existencial (e até mesmo sartreano, diante da inutilidade desses destinos). A poetisa se perde um pouco em descaminhos poéticos visivelmente influenciada pela técnica da ´palavra mágica´, repetindo chavões modernos, neoparnasianos, como expressões ambíguas e o uso imoderado das ´papoulas´. Há salgueiros, espigas e papoulas em demasia.


“Na segunda parte, embora sem se libertar do formalismo neoparnasiano, a poetisa se identifica mais com ela mesma. ´O Livro de Renato´ é menos formal e mais humano. Podemos mesmo dizer que é o texto mais denso e profundo do livro, porque mais impregnado de humanidade. Enquanto isso, a terceira parte é o momento mais alto. ´Pastora de Vendavais´ é a sequência de poemas em que a inspiração de Alzira se abre para o intemporal, o humano individual da segunda parte, atingindo o limiar do humano-humanidade.


“Se o leitor achar que esta apresentação complica o assunto, procure ler o livro de Alzira Pacheco Lomba e confrontá-lo com o que estamos dizendo. Há três vantagens nessa atitude: o leitor se impregnará de boa poesia, estimulará a autora e fará justiça ao colunista.”



Lançamento do livro “3”
Lançamento do livro “Sonegação de Ternura”, em 1968.


“Sonegação de Ternura”



D. S. Pinto de Moura e Jurandy Santos, na apresentação da autora e do livro “Sonegação de Ternura”, escreveram na orelha da obra:


“Poesia pela poesia


“Ainda mais uma vez, 4 Artes traz a público outro livro premiado. Trata-se de SONEGAÇÃO DE TERNURA, de ALZIRA PACHECO LOMBA, que mereceu menção honrosa no Prêmio Governador do Estado de 1965.


“SONEGAÇÃO DE TERNURA é uma seleção de poemas que impressionam, não somente pelo esmerado estilo, pleno de belas imagens, livre de rebuscos, com a mais desejável fluência da pena de um poeta.


“Alzira Pacheco Lomba não é estreante. Suas publicações são, todavia, pouco frequentes, prejudicando a popularidade da escritora, mas pagando-nos com a excelência das obras de sua lavra.


“Natural de Glicério (São Paulo), radicou-se em São Paulo desde criança, onde seguiu seus estudos, até que se graduou em Direito em 1959. Dedicou-se a outros estudos, especialmente o de línguas, e foi jornalista nesta Capital, especializada em ciências econômicas e algumas críticas literárias. Transferiu-se agora para a cidade de Registro, em realização do velho sonho de residir às margens do rio Ribeira.


“Escritora de grandes méritos, deixa fluir seus poemas com toda a poesia, sem desejos de fixá-la em qualquer esquema ideológico. Traz-nos a poesia pela poesia, que colhe na natureza, na criança, no mundo que a cerca ou no subjetivismo. Domina com precisão invejável o estilo metrificado ou não, de tal forma que o leitor menos avisado nem nota o metro dos versos nos sonetos, em virtude da adequação da palavra à imagem, de espontaneidade do tratamento do tema. A mais clara impressão é a de que a percepção da vida e do mundo já é elaborada em poesia, no trabalho mental da escritora. Ela só vê e vive poesia.


“É ainda interessante assinalar-se que desde a primeira obra que publicou (intitulado 3), ora esgotada, Alzira Pacheco Lomba demonstrou a plenitude de sua poesia. Assim sendo, o maior traço de coerência que nela encontramos é o de não ar pelas discutidas ´fases´ literárias. Surgiu poeta e segue poeta, sem sofrer crescimento, sem ter sofrido de ensaio e erro. Esta é a maior das razões para futuras reedições de suas obras esgotadas, que 4 Artes pretende em futuro proporcionar ao grande público.


“Com mais esta escolhida edição, temos certeza da contribuição que 4 Artes tem oferecido no cenário editorial de nosso país.”


***


O “Suplemento Literário”, de “O Estado de S. Paulo” (nº 617, de 8/3/1969, pág. 2), na seção “Lançamentos”, publicou a seguinte nota a respeito de “Sonegação de Ternura”


“Nesta obra, que alcançou menção honrosa no concurso ´Prêmio Governador do Estado´, de 1965, a autora evidencia dotes de captação do sentido poético das coisas e dos fatos.”


***


Ainda sobre o livro “Sonegação de Ternura”, o poeta João Sávio escreveu o seguinte comentário sobre o “Soneto XV”:


“Trata-se do segundo livro de poemas da poetisa Alzira Pacheco Lomba Kotona, figura das mais respeitadas, na região do Vale do Ribeira/SP, tanto na Literatura como no Direito. O livro recebeu menção honrosa no ´Prêmio Governador do Estado´, em 1965. Arquiteta sem comparação na Arte Real de sutilmente maquinar versos justos e perfeitos. Minha amiga Alzira Pacheco apresentou, nessa obra, uma bela seleção de poemas, que nos levou ao delírio, à reflexão, ao encanto. Percebeu que neste soneto, todo ele foi escrito em letras minúsculas"> (Blog de João Sávio, em 26/6/2010),



“O Vale da Esperança”


Lançamento do livro “O Vale da Esperança”, em 197
Lançamento do livro “O Vale da Esperança”, em 197


Em sua dissertação “Entre ritmos: As habilidades perceptuais de pescadores em paisagens multiespecíficas (vila do Pontal do Leste, Cananeia - SP)”, de 2017, defendida na Universidade de Sâo Paulo para a obtenção do título de mestre em Filosofia, Lucas Lima dos Santos incluiu o poema “Vida”, de Alzira Pacheco, do livro “O Vale da Esperança”, na epígrafe do capítulo II de sua dissertação (“Os antigos e a turma de hoje: a constituição da identidade fluvial e marítima”).



REVISTA “LEITURA”


A prestigiosa revista “Leitura”, então editada no Rio de Janeiro (nº 69, março de 1963), quando Alzira Pacheco tinha publicado apenas o livro “3”, mas já era respeitada nos meios literários, publicou, à página 26, o poema “Balada para Renato”:

        

“Balada para Renato”


O meu amor de mil rostos

no fundo não tem nenhum.

Se caminha pelas ruas

com a face concentrada,

se trabalha em oficinas,

nos bancos, nos escritórios

ou no jornal de amanhã,

se ama as noites de lua

e os ventos da tempestade

eu não sei ou ninguém sabe.

O meu amor de mil rostos

no fundo não tem nenhum,

mas tem um nome encantado

que ele mesmo desconhece.

Um nome que apenas vive

na minha voz de sussurro

quando sei que ele me ouve

nas noites iluminadas

por estrelas invisíveis.

O meu amor de mil rostos

Renato não tem nenhum.



ALZIRA POR SEUS AMIGOS


Os poetas Lauriano dos Santos e Sueli Correa, que foram amigos e iradores de Alzira Pacheco Lomba Kotona, escreveram, por ocasião de seu falecimento, as suas impressões a respeito da querida poetisa.



Alzira por Lauriano Dos Santos


“Em 1967, quando eu iniciava a 2ª série ginasial, uma jovem senhora de 33 anos era a nossa professora de francês. Mulher de pequena estatura, fala forte, personalidade marcante, segura de sua tarefa de ensinar, entrava na nossa vida, especialmente para mim, como um modelo a ser seguido. Logo cativou a todos nós, porque era irável na sua forma de conduzir a classe, sem a imponência dos doutos, mas com a classe da mestra e o respeito dos grandes líderes. Estávamos em plena ditadura militar, contudo, mesmo não aceitando o regime que se instalava no nosso país, [Alzira] tinha o cuidado de não nos levar a dissabores que o momento oferecia. Embora não se limitasse à sua matéria, posto que, fora da sala de aula, estava sempre disposta a conversar conosco, sabia, com prudência, ar os seus ensinamentos. Naquele ano, e também no ano seguinte, em que fui seu aluno, tive a honra de ser destaque entre os colegas, na sua matéria, recebendo dela os livros: ´3´ e ´Sonegação de Ternura´, de sua autoria, e ´Correio Sul´, que guardo como relíquias”.


“Quem era aquela professora? Alzira Pacheco Lomba, irmã da já consagrada professora e advogada Dra. Rosália [Pacheco Lomba Teixeira Nogueira, 1920-1998]. Era, para mim, uma alegria imensa ser aluno de uma poetisa (eu sempre amei a poesia) e nos intervalos das aulas, sempre que podia, estava a conversar com ela. Foi assim que nasceu uma das mais belas amizades de minha vida.


“Mais tarde, quando entrei para a política e fui eleito vereador, lá estava a Doutora Alzira e me aconselhar e me ajudar na nova empreitada. Quando fui convencido para ingressar na Academia Eldoradense de Letras, lá estava a figura marcante, a poetisa maior da região, Dra. Alzira. Quando fui nomeado diretor do Escritório Regional do Interior e depois Escritório Regional do Governo, no Governo Montoro, convidei-a para ser a assessora jurídica e tive o privilégio de contar com a sua sabedoria e qualidade profissional por aproximadamente quatro anos. Foi na convivência mais estreita que pude aprender que aquela inteligência respeitável, aquele jeito circunspecto, comportava como maior virtude a humildade e o amor ao próximo.


“Em 1988, quando fui candidato a prefeito, fiz questão de que ela fosse a minha companheira de chapa, como candidata a vice-prefeita. Se não fomos vitoriosos nas urnas, fomos vitoriosos na forma de fazer política, cuja campanha foi, para mim, até hoje, a que mais representou, posto que, como não tínhamos dinheiro para competir com o poder econômico dos adversários, tínhamos a união e a solidariedade dos companheiros. [...] A Dra. Alzira é a minha grande lição de vida.”


(“Dra. Alzira: uma lição de vida”, in “Jornal Regional”, nº 680, 28/7/2006).



Alzira por Sueli Correa


“Dona de valores incomparáveis e de virtudes incontáveis, doutora Alzira era de uma simplicidade e de uma humildade tocantes. Atributos, aliás, s às pessoas sábias. Formada no Largo de São Francisco, foi contemporânea dos principais juristas brasileiros e seria um deles não tivesse feito o caminho inverso. Veio para o interior acompanhando os pais quando eram na capital que estavam, já naquela época, as oportunidades de ascensão profissional.


“Foi professora de Português e Francês, idiomas que dominava bem junto com o Espanhol. Nas três línguas escreveu poesia e, como poeta, inscreveu seu nome na Literatura Brasileira, ao lado daqueles que conseguiram colar a emoção ao verbo e traduzir os sentimentos do povo.


“Ao substituir a sala de aula pelos tribunais, o fez movida pela vocação, pois, ao dinheiro, deu o valor exato que tem o de assegurar a sobrevivência, mais nada.


“Em sua casa, recebia todo tipo de pessoas, que ela não fazia distinção, entre ricos e pobres. Foi, porém, aos que não tinham contas bancárias polpudas que dedicou grande parte de seu trabalho, sempre defendendo a liberdade. Mesmo em quem a maioria nada enxergava de bom, ela via algo porque valesse a pena lutar por sua inocência ou, mesmo, para amenizar a penalidade. Em todos os ofícios a que se dedicou, a doutora Alzira transformou o trabalho numa declaração de amor ao ser humano.


“Recebeu as coisas boas que a vida lhe proporcionou como presentes de Deus. Foi assim que recebeu os filhos, os amigos, a profissão e a vida que a abandonou nove dias antes de completar 71 anos de idade.”


(“Doutora Alzira”, in “Jornal Regional”, nº 680, 28/7/2006).



SELETA DE POEMAS


“três”


três fantasmas insepultos

na noite do desassombro.

três vultos inutilmente

vagando nas ruas mortas.

fechadas todas as portas,

extintas as luzes todas,

há trevas dentro das trevas,

há sombras dentro da noite,

há palavras inconclusas

e gestos não esboçados.

três será o número da morte.

da morte a cada o pressentida

e invocada a cada gesto.

três será o número da morte,

três vultos naufragados na alvorada

e dissolvidos no último crepúsculo.

uma canção que se eleva

com vozes de desespero,

uma canção de silêncio

e de palavras já mortas.

dentro da noite caminham

três vultos buscando vida.

três fantasmas insepultos

de face desconhecida,

três vozes feitas de sombra,

três risos feitos de angústia,

três sonhos feitos de nada.


três será o número da morte.


(Do livro “3”, pág. 7)



“I” (de “as manhãs”)


três crianças sem cirandas,

sem sorrisos, sem canções.

três para cavar os alicerces

e construir o dia.

para plantar os bosques do crepúsculo

e regá-los de pranto adolescente.

para as ruas, descobertas

no improviso da palavra.

para os os sem medida

e o poema imprevisível

metrificado em soneto.

nada mais que três, e eram crianças,

e colhiam amoras nos caminhos,

e criavam carinhos com a voz.

nada mais que três, e eram crianças.

três crianças sem cirandas

para inventar as manhãs.


(Do livro “3”, pág. 11)



“I” (de “as tardes”)


e então partiram de mãos dadas.

era chegada a hora da colheita,

mas os jovens não colhem. se semeiam,

semeiam sonhos e mais nada esperam.

ficaram as bandeiras, ondeando

ao vento cru do entardecer.

mas havia os salgueiros e as papoulas

plantadas nas manhãs.

mas havia a messe rubra

na superfície da terra.

a messe de sofrimento

semeada por abertas

mãos vazias de ilusão.

necessário era colhê-la

e à flor vermelha nascente

nos sulcos antes cavados.

mas sabiam dos bosques do crepúsculo

e das sombras que descem abrigando

o lamento fatídico e as papoulas

e então partiram.

de mãos dadas.


(Do livro “3”, pág. 19)



“II” (de “as noites”)


enrijadas pelo fogo

as mãos uma vez unidas

trazem gestos de colheita.

mas dos risos enterrados

da doçura das cirandas

das estrelas das auroras

e messe já não existe.

vieram os fantasmas pela noite

e o gargalhar das bruxas das cavernas

festejou a colheita destruída.

mas as mãos vindas de longe

trazem sabor de ternura

e gestos de recolher.

que safra restaria para as sombras

que a noite devolveu aos campos de ontem?

as altas chamas vagueiam

e se desfraldam bandeiras

sobre o sulco dos arados.

que safra restaria para sombras?


(Do livro “3”, pág. 28)



“soneto I”


a noite traz um céu de estrelas loucas,

um ar de cotovias e rosais,

e todas as ternuras são tão poucas

para dizer de amor, doçura, paz.


a noite traz um céu de nunca mais

e um travo de amargura a nossas bocas

quando os ventos são vozes ionais

e todas as ternuras são tão poucas.


a noite traz um céu de despedida

aos nossos olhos tristes e cansados

deste cansaço de consciências ocas.


para ocultar a voz de antes, perdida,

são os esforços todos demasiados

e todas as ternuras são tão poucas...    


(Do livro “Sonegação de Ternura”, pág. 5)



“tempo e rio”


olha: o tempo está ando.

as águas do rio estão ando

e com elas as imagens refletidas

que já não são, nem são as mesmas.

olha: o tempo está ando.

nossos ásperos vultos desunidos

em margens diferentes também am

com as águas do rio e as imagens do ontem.


e é tão fácil transpor

o rio de incompreensão que nos separa.

basta que estendas tuas mãos

tolhidas pelo medo

e nossas mãos unidas

hão de deter o tempo

hão de deter o rio

hão de deter o hoje.


estende-me tuas mãos.


(Do livro “Sonegação de Ternura”, pág. 35)



“soneto XV”


eis que estou só mais uma vez, e amarga.

desta amargura inútil que nos resta

após o sonho, após a luta, após a festa,

que trava a boca e o nosso o embarga.


eis que estou só mais uma vez, e a febre

desta ternura imensa e sem destino

fecho no meu olhar em desatino

para que em pranto vão não se me quebre.


Busco, pois, um caminho em que derrame

esta chuva de amor que se represa

nos meus olhos doentes de cansaço.


e nada vejo em torno que reclame

ou a ternura inútil que me pesa

ou este vão amor que é meu fracasso.


(Do livro “Sonegação de Ternura”, pág. 33)



“Miracatu”


Prainha de mistério

onde ficou teu mar de sonho e calma

teu mar secreto?

Onde o teu ouro de ontem

afogado no asfalto

que tomou de surpresa

as ruas silenciosas e macias

enroladas nas curvas?

Prainha dos segredos

onde ficou teu mar irrevelado

que derrama em teu ar

esse encanto sem nome

inexplicado

que povoa de sonho e de esperança

novos caminhos de Miracatu?


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 23)



“Juquiá”


O trem de ferro veio vindo, veio vindo

cansado da vida.

(Subo morro

desço morro.

Paro? Corro?

Vivo? Morro?)

Soprando fumaça nos olhos da lua.

Parando na estrada pra olhar a beleza

das pedras, dos rios.

Cantando de longo no apito comprido.

Contando curvas: uma e outra e uma e outra

e cem e mil.

O trem de ferro veio vindo, veio vindo

e parou

cansado da vida

na porta do vale.

Trem parado, cansado, esperando...

Vem banana boiando em barcaça no lombo do rio.

Vem banana puxada em carroça no lombo da serra.

Trem parado, esperando, na porta do vale.

O trem

suspirou e partiu.

Levando banana pra beira do mar.

Pro ventre bojudo dos grandes navios.

Pras terras de longe ouro verde do vale.

Chorando saudade no apito comprido.

(vou pra longe

vou tristonho

vou sem pressa

de chegar.

Com vontade

de voltar.)


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 25)



“Registro”


Pelo Porto do Registro

quanto ouro registrado.

Quanto metal amarelo

que rolou por esse rio

nas canoas de outro tempo.

Mas quanto caminho novo

foi traçado pelas matas

para fugir ao registro.

Quanto metal amarelo

derramado pelo rio

até fazer-se líquido

nas chávenas translúcidas e louras.

O japonês trouxe o chá e plantou

paisagens de porcelana nas estradas.

Líquidos sóis no entardecer tranquilo.

Lembranças de quiosques e quimonos.

Os caminhões de alma noturna

encostam junto aos bananais

e vão pesados de cachos de esperança

que serão ouro lá fora.

Pelo Porto do Registro

quanto ouro ará?


Pelo Porto do Registro

am barquinhos de vela:

velas acesas na noite

pelos corpos que se foram

pelas águas do Ribeira,

pelas almas que ficaram

repousando nos remansos.


Pelo Porto do Registro

minha alma ficará?


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 27)



“Sete Barras”


Sete barras de ouro puro

foram roubadas e ocultas.

Quem sabe do esconderijo?

Só a terra, o céu e o rio.

As sete barras de ouro

são perdidas para os homens.

Mas sete barras de rios

marcam o mesmo caminho

das lendas de antigamente.

Caminhos dos bandeirantes

pelas matas, pelas serras,

caminhos de pedra nua

pousos feitos de segredo

no mistério da floresta.

Quem sonharia os caminhos

das minas do antigamente?

Que bateias lavrariam

minas do Cavalo Magro

águas do Etá e Ipiranga?

Para arrancar novamente

estrelas das mãos da iara.

Sete barras de ouro puro

para alimentar o sonho.

Sete barras de sol e de futuro

para alimentar a vida.


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 29)



“Jacupiranga”


O pássaro vermelho, guardião dos tesouros,

pousado no vale

na boca das minas

pressagiava a alvorada.


Amanhece no vale brotando das minas

o futuro indústria.

O futuro máquina.

Afugentando a iara dos cabelos verdes.

Afugentando a brisa do cair da noite.

Afugentando a estrela.


O pássaro vermelho guardião dos tesouros

vai levantar o vôo

e inventar o amanhã.


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 31)



“Pariquera-Açu”


Cartão-postal.

Presépio.

Laranjais pesando de ouro os braços de esmeralda.

Chave do futuro encerrado nas portas

do alvorecer do vale.

Chave da luta que começa

sem princípio nem fim.

Chave do enigma secreto

da Serra do Cadeado.

Chave do sonho sem descanso

norteando o ideal.


Na forquilha de estradas, junto ao rio

Pariquera

velha armadilha de peixes

tocaiando o amanhã. Que hoje começa.


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 33)



“Subaúma”


Dormir sobre seus flocos de alva espuma

numa casa de alpendre em frente ao mar.

A doçura das noites sem mais luzes

que as estrelas e a lua

nadando nua

no céu e no mar.

Lenha seca cheirando a mato virgem

no telheiro cheirando a maresia.

A canoa virada sobre a areia

para a doce preguiça de pescar.

Conversa de fim de noite

ao pé do fogão de lenha;

(paira no ar parado

perdidamente claro

um cheiro de jasmim e de café).

Porto.

Ninho tranquilo donde se desprende

um ruflar de asas tímidas de sonho.

O alpendre, a lenha, o fogo

a canoa, o café

e as alvas subaúmas acenando

fofos flocos no ar: meu Xangrilá.


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 35)



“Iguape”


Intacta, colonial, a cidade flutua

entre os braços

do rio, proteção e acalanto.

Imutável no tempo, intocável e eterna

como as rochas e os rios, como a fé e a esperança.

Sentinela do vale esperando os piratas

espiando o oceano de estranhos e invasores

contemplando o horizonte onde o sol vai nascer.

Sacerdotisa de um ado morto

guardando o seu mistério e os seus tesouros

de olhos profanos e dos pés calçados

com botas de sete léguas do progresso,

desiludida dos aqui e agora

Iguape se fez ilha

para guardar-se

entre os braços do rio (luz e prata)

distanciada do hoje e do futuro.


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 37)



“Cananeia”


Caminhos de bem-querer e pontes de abstrato

para chegar à ilha.

Um vôo sobre o mar entre biguás e peixes

prata polida riscando nas águas

relâmpagos esquivos;

vento do mar despetalando

as árvores floridas.

E o lento deslizar das balsas preguiçosas

alongando o chegar.

Casarões espiando

a estreiteza de areia das ruas sossegadas.

Lembrança de senzalas no ar noturno

da vila imperial.

O cais contando histórias de brancas caravelas

e de negros vapores.

E a paz.

Cobrindo a areia, a rua, os casarões,

as flores que cresceram nos telhados

a vila, o cais.

Adormecendo as almas intranquilas.

Calando a voz

que persiste em gritar entre céu e oceano

seu grito de amanhã.


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 39)



“Eldorado”


Esculpida

no sol do vale

no azul do vale

na água do vale.


Dissolvida em manhãs

de nítida paisagem

toda luz, toda céu, toda rio.


Lembranças de sonhos de fortuna

e fortuna de sonhos e lembranças.


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 41)



“Caverna do Diabo”


Cem mil anos, a fada

teceu rendas de pedra nas paredes.

Amaciou com lágrimas

o rígido calcário da montanha

e a gruta abandonada

se fez um templo gótico.

No fundo mais profundo da lagoa

a fada azul

jamais desenganada

aguarda ainda o príncipe sem nome.

Sobe nos fins da tarde

para encantar o moço aventureiro

e levá-lo ao seu reino pedra e sonho.

Canta nas noites seu sentido canto

a gruta, a pedra, a renda

a lama, o gelo

a solidão sem fim.


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 43)



“Vida”


Caiçara vive de teima.

Que nem banana, moço.

A muda na cova, cabeça pra baixo,

adubo queimando,

sol demais, chuva sobrou,

e o broto teimoso levanta a cabeça

fura a terra, vara a chuva

encara o sol

sobe, cacheia, dá fruta.

Caiçara vive, moço. De teima.

Igualzinho banana.

Vem a chuva, a enchente, o rio.

Água carrega o barraco

mata o porco, afoga o milho

enlameia o bananal.

Caiçara vive de teima.

Amanhã a água baixa

o rio volta pro lugar

a vida volta também.


(Do livro “O Vale da Esperança”, pág. 17)



EM ITALIANO


Na antologia “Poesia del Brasile d´Oggi” (Palermo, 1970), foram publicados em italiano três poemas de Alzira Pacheco: “Il Cassetto” (Gaveta), “Quando sarò grande” (Quando eu crescer) e “Manifesto” (Manifesto). Abaixo, reproduzimos o primeiro e o terceiro, na disposição italiana dos versos, que diferem dos originais brasileiros.


“Il Cassetto”


Quanti ritagli

   di tenerezza antiga

(fiori, ritratti,

   carte dementicate)

dormono nel tuo seno...

Quanta parte di nostalgia pacata,

quanta infanzia e Che amara giovinezza...

Un voto che resto sempre fanciullo

nel sorriso sereno del ritratto

e che la vita

   lasciò indietro nel tempo

   ed invecchiò.


Ed un abbraccio

   senza destinatário nel biglietto

che non fu mai mandato.

Ed un gesto gentile in una rosa

che um giorno fu scarlatta

   ed ora grigia

apisce tra sogni e vaghi appunti.


Quanti sogni vissuti,

   quanta vita sognata,

nel cassetto rimasto a lungo chiuso

che riapre la chiave

   della malinconia...



“Gaveta”


quanto retalho de ternura antiga

(flores, retratos, cartas esquecidas)

dorme em teu seio.

quanta saudade mansa,

quanta infância e que amarga juventude.

um rosto que ficou menino sempre

e a vida distanciou e envelheceu.


um abraço sem dono no bilhete

que nunca se mandou.

um gesto de carinho numa rosa

que foi vermelha um dia e que cinzenta

se desfaz entre sonhos e papéis.

quanto sonho vivido, quanta vida sonhada,

na gaveta esquecida que se abre

com a misteriosa chave da saudade.



“Manifesto”


É tempo

   di scendere in sciopero, compagni,

e di fare comizi

   e eggiate

e montare picchetti per le strade.


Noi scioperiamo per rivendicare

l´aumento delle stelle

nel firmamento della nostra notte,

per protestare

   una fame insaziata di dolcezze

che ci corrode tutta l´esistenza.


C´è un´aperta inflazione di contrasti

ed evasione dalle tenerezze,

razionamento

   di sogni.


Ecco perchè dobbiamo scioperare

com cartelli di lotta

   e di protesta contro

la disoccupazione

   degli ideali.


Dichiariamo lo sciopero ad oltranza,

   mie compagne e compagni.


Portiamo per le strade

   il nostro grido

e fermiamo la corsa

delle macchine cieche,

sinchè la luna

   ritorni a contemplarci

e gli uomini ritornino a sognare.



“Manifesto”


vamos à greve, companheiros,

façamos comícios e eatas

e organizemos piquetes nas calçadas.

vamos à greve,

reivindicar o aumento das estrelas

no céu de nossa noite,

protestar contra a fome de carinho

que destrói nossa vida.


há inflação de conflitos,

sonegação de ternura,

racionamento de sonhos.

vamos à greve

com cartazes de luta e de protesto

contra o desemprego

de nossos ideais.

vamos à greve, companheiros,

e levemos à rua nosso grito

até que as máquinas parem

que a lua nos contemple

e os homens sonhem novamente.



TROVAS


Alzira Pacheco, além de talentosa sonetista, foi também uma trovadora de alto quilate. A trova abaixo mereceu Menção Honrosa nos III Jogos Florais de Sete Lagoas (MG), de 1980:


O destino caprichoso

não quis fazer-me feliz:

deu-me o que sonho que ouso

e não me deu quem eu quis.



AGRADECIMENTOS



Para a confecção deste estudo biográfico, foram importantíssimas as informações fornecidas por Elisabeth Pacheco Lomba Kozikoski, Sueli Correa e Lauriano dos Santos.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


A Cigarra (RJ), nº 203, fevereiro/1951, pág. 159.      

A Gazeta (SP), de 10/10/1952.

Diário da Noite (SP), nº 8.525, de 15/10/1952, pág. 4.

A Gazeta (SP), de 13/12/1953.

Correio Paulistano (SP), nº 31.456, de 16/10/1958, pág. 2.

Manchete (RJ), nº 414, de 26/3/1960.

Manchete (RJ), nº 416, de 9/4/1960.

Diário da Noite (SP), nº 11.599, de 13/11/1962, pág. 6.

Leitura (RJ), nº 69, março/1963, pág. 26.

O Jornal (RJ), nº 13.553, de 30/11/1965, pág. 2

Jornal do Brasil (RJ), nº 261, de 11/2/1969, pág. 10.

Tribuna da Imprensa (RJ), nº 5.731, de 13/2/1969, pág. 2.

Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, de 8/3/1969, pág. 2.

Jornal do Brasil (RJ), nº 127, de 2/9/1970, pág. 3.

O Jornal (RJ), nº 15.235, de 28/5/1971, pág. 2.

Jornal Regional (SP), nº 680, de 28/7/2006, págs. 2, 3.



O AUTOR


ROBERTO FORTES

ROBERTO FORTES, historiador e jornalista, é licenciado em Letras e sócio do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.  E-mail: [email protected]



(Direitos Reservados. O Autor autoriza a transcrição total ou parcial deste texto com a devida citação dos créditos).



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